“Se o apontar à justiça como horizonte político faz de Platão um
filósofo do direito revolucionário, sua legitimação do Estado e do soberano
como os responsáveis pelo destino de toda a sociedade revela seu corte de
classe e sua filosofia política de dominação. A originalidade de Platão, sua
singularidade no todo do pensamento jurídico e seu incômodo para a filosofia do
direito prosseguem ainda hoje”. (MASCARO, 2012, grifo nosso)
“OUTRORA NA MINHA juventude experimentei o que tantos jovens
experimentaram. Tinha o projeto de, no dia em que pudesse dispor de mim
próprio, imediatamente intervir na política”. – “Quem assim escreve, em
cerca de 354 a.C., é o setuagenário Platão, numa de suas cartas – a carta VII,
endereçada aos parentes e amigos de Dion de Siracusa” (PLATÃO, 1999)
Platão. Imagem: Pixabay |
Sócrates não deixou nada escrito. O que se sabe hoje é
através de terceiros. Em especial, a partir de seu discípulo Platão. (RAMOS;
MELO; e FRATESCHI, 2018)
“Um dos maiores filósofos de todos os tempos, Platão (427
a.C. – 347 a.C.) é autor de dezenas de diálogos, cuja influência se estende por
todo o pensamento ocidental até os dias de hoje. Grande parte do saber grego –
a ciência, a matemática, a ética, as artes, a educação, entre outros ramos –
foi examinada por Platão, responsável pela maior sistematização filosófica
realizada até sua época. Ateniense de família ilustre, ele dirigiu o foco de
sua atenção para a arte de governar: qual o melhor regime político possível? A
quem deve ser designado o poder? Qual deve ser a estrutura da sociedade? Muitas
dessas questões são tratadas em A
República, obra magistral de sua maturidade, em que se entrelaçam conceitos
estéticos, éticos e jurídicos. Utopia social por excelência, A República pode ser dividida em três
partes. Na primeira Platão sugere um modelo de cidade ideal, formada por três
classes sociais relacionadas com as partes da alma; na segunda parte o filósofo
discute o conhecimento humano, do mundo ilusório das sombras à realidade das
ideias. É então que se apresenta a teoria platônica das ideias segundo a qual
todo objeto natural corresponde uma entidade abstrata no plano ideal. No ápice
desse quadro encontra-se o conceito supremo de Bem, que também é o princípio de
todo o conhecimento. Finalmente, na terceira parte da obra, Platão confronta as
diversas constituições e formas de governo existentes e explica qual seria a
mais adequada. Profundamente rica e densamente instigante, A República é obra basilar de nossa cultura, fonte permanente de
inspiração e reflexão”. (PLATÃO, 2002)
Foto: Pixabay |
Com efeito, A República se trata: “Uma obra fundamental na trajetória do pensamento filosófico”. Trata-se de fato da obra mais relevante de Platão. A República mistura um modelo de utopia social e uma reflexão acerca da construção do conhecimento humano. O filósofo argumenta suas ideias políticas e filosóficas, em paralelo, com abordagens estéticas, éticas, pedagógicas e jurídicas. Também se encontra em seu trabalho o Mito da Caverna. Em tal passagem, o autor contrapõe as sombras da ignorância até a realidade verdadeira (evolução do conhecimento). Para Platão, a aquisição do conhecimento é algo libertador. Sua obra propõe, assim, reflexões sobre a realidade suprema e uma sociedade ideal. (PLATÃO, 2002)
Simplificando, pode-se também caracterizá-lo: “[Platão] É considerado um dos primeiros filósofos políticos, classificado como um moralista que busca um ‘bom governo’ e formula a teoria de um Estado ideal abstrato. Platão (427 – 347 a. C.) desenvolveu sua teoria do conhecimento e seus conceitos éticos em um sistema metafísico e moral. Sustentava que a verdade era um conceito abstrato somente acessível aos indivíduos que possuíssem faculdades excepcionais. As ideias de Platão, em teoria, conduzem políticas como um sistema científico independente. Combinou os princípios éticos e políticos, dedicou toda a sua atenção aos fins do Estado e considerou a política como arte de tornar os homens mais justos e virtuosos. Suas obras políticas são: A república, O político e As leis”, afirma Dias. (2013)
Para Platão, o Estado ideal se firma em uma aristocracia eleita pela inteligência. Para ele, as únicas pessoas aptas a governar se tratam daquelas que detêm “uma concepção abstrata do Estado”. (DIAS, 2013)
Livro. Foto: Pixabay |
“Acreditava que a tirania é a pior forma de governo”, lembra Dias (2013). Para tanto, a libertação das massas origina a democracia. Do arbítrio da liberdade se origina a anarquia. E no fim deste processo aparece a tirania (mais longe da justiça – que vingava no Estado ideal). (DIAS, 2013)
Em seu Livro II, Platão (2002) discorre:
“Sócrates – A justiça é, como declaramos, um atributo não apenas do indivíduo, mas também de toda a cidade?
“Adimanto – Sim.
“Sócrates – E a cidade não é maior que o indivíduo?
“Adimanto – Claro.
“Sócrates – Logo, numa cidade, a justiça é mais visível e
mais fácil de ser examinada. Assim, se quiserdes, começamos por procurar a
natureza da justiça nas cidades; em seguida, procuraremos no indivíduo, para
descobrirmos a semelhança da grande justiça com a pequena.”
PLATÃO | Guia do Estudante - Entenda o dualismo platônico e o Mito da Caverna (Saiba mais)
PLATÃO | Wikipédia (Saiba mais)
PLATÃO | Brasil Escola (Saiba mais)
PLATÃO | Guia do Estudante - Entenda o dualismo platônico e o Mito da Caverna (Saiba mais)
PLATÃO | Wikipédia (Saiba mais)
PLATÃO | Brasil Escola (Saiba mais)
Quanto à questão de transcendência e alma, Rocha (2014) reflete sobre Platão: “Afinal, o que é a essência nos homens? O espírito, a alma. Mas a alma precisa do corpo para se desenvolver. A alma em Platão tem duas características: ela é preexistente (existe antes do corpo). Compõem a alma três partes: Logística, a parte superior, que corresponde à razão; Irascível, a parte mediana, que corresponde às paixões; Apetecível, a parte inferior, que corresponde aos vícios. Esta mesma tríade é comparada pelo autor às três partes do corpo”.
Desse modo, Platão expõe de maneira ontológica a luta entre o bem e o mal dentro do próprio espírito, ou seja, dentro do próprio homem. Com isso, “[a] razão deve relutar em deixar dominar pelas paixões e pelos vícios; ao contrário, ela deve conseguir se sobrepor a estes e garantir a harmonia necessária para que o ser trilhe seu caminho”. (ROCHA, 2014)
“Portanto, ressalte-se, ainda que a categoria platônica mais importante seja metafísica – a alma -, a visão idealista platônica não recorre a nenhuma circunstância externa ao ser humano para explicar ou justificar o mal e todas as imperfeições mais escatológicas que dele derivam. Esse compromisso com a compreensão da condição humana em suas limitações, e mesmo sua capacidade de ultrapassá-las, encontra-se absolutamente nas contradições que desde o início povoam os espíritos do próprio homem. Nesse sentido, os males da existência humana, imateriais e materiais, advêm de dentro do próprio ser e só a partir desse interior podem ser ultrapassados”. (ROCHA, 2014) e conclui: “Em eras seguintes, a Filosofia penderá ora para esta visão ontológica, ora para a fuga do ser de si mesmo, reportando a seres superiores ou mesmo à pura experiência social a causa de seus sofrimentos”. (ROCHA, 2014)
Gregos. Quadro: Pixabay |
No que se refere à moral socrática e platônica, Rocha (2014)
pondera: “O pensamento platônico, todo ele inspirado em Sócrates, é mais do que
uma metáfora sobre a condição humana. É a própria condição humana. Ainda que a
Filosofia possa começar no Ocidente de forma idealista, o fato é que os
desdobramentos da ciência do ‘conhecimento verdadeiro’ deitam seus tentáculos
em todas as áreas fundamentais da existência humana”.
Quanto ao Mito da Caverna, “[e]sta poderosa metáfora [...] sintetiza em vários níveis não só os fundamentos da Filosofia socrática/platônica, como também a essência dos dilemas impregnados na existência e condição humana. Em primeiro lugar, vê-se aqui a dualidade entre a luz e a escuridão, entre a essência e a aparência, e daí o importante papel da Filosofia como ciência reflexiva e iconoclasta que procura desmistificar essa ‘pseudoconcreticidade’ da realidade (as sombras projetadas na parede da caverna)”. (ROCHA, 2014)
Secundariamente, no mito se demonstra o sofrimento por que se passa para deixar as sombras e que se atinja a realidade “(a luz que ofusca, a dor que a luz provoca)”. Rocha assim questiona se o homem atual está pronto para sofrer e descobrir a verdade alienante do dia-a-dia. Senão, “Estamos dispostos à liberdade ou aos grilhões da comodidade?”. (ROCHA, 2014)
“Finalmente, a constatação tão óbvia quanto frustrante: os homens das sombras não querem saber da verdade, se recusam até mesmo a refletir e a verificar se o que o conhecimento novo lhes diz pode ser importante para melhorarem seu cotidiano e suas existências. Pior: desdenham e repudiam o conhecimento da verdade, agridem, insultam, aviltam, constrangem e excluem de seu convívio os arautos de novas possibilidades existenciais; é a perfídia e a maledicência contra a virtude [...] A humanidade se volta contra a Filosofia e igualmente contra si mesma: desumaniza-se!”. (ROCHA, 2014)
Foto: Wikipédia |
Portanto, os alienados, na realidade concreta do cotidiano, preferem esta condição humana, ao invés, de saber a verdade. E quando alguém que descobre a verdade se manifesta, os alienados a repudiam. Preferem a ignorância a saber a verdade.
Rocha (2014), então, encerra suas reflexões, trazendo importantes contextualizações sobre o assunto:
“A história bíblica da crucificação repete o mito platônico
da mesma forma que o ratinho volta para trazer comida aos ratinhos letárgicos
que não ousaram sair do lugar (Quem mexeuem meu queijo?). Da mesma forma que um Neo (Matrix) precisa abraçar a causa dos homens reais para derrotar o
poder da tecnologia cibernética “supravirtual” de nossos dias, da qual ele
mesmo é produto refinado [um dos personagens se lamenta de ter tomado a pílula
da verdade, preferindo retornar em um humano bem de vida, mas ignorante], e
provar a Sofia (O mundo de Sofia) que
vale a pena subir nos pêlos do coelho e deixar de ser mero carrapato
parasitando o pobre bichano. Afinal, o que aprendemos com a odisseia terrestre,
o que aprenderemos com a odisseia no espaço (2001 – Uma odisseia no espaço) para além do mundo cáustico e escuro
de Blade Runner [...]?”. (ROCHA, 2014, com observações nossas)
Quem foi Platão? (JEANNIÈRE, 1995). E a autora responde: “Ninguém está certo de ter compreendido bem Platão. Para fazer uma introdução ao seu pensamento, como não reduzi-lo a fragmentos esqueléticos? Para apreender os momentos mais árduos do discurso metafísicos, é preciso fazer uma ginástica conceitual complexa. Platão sempre nos escapa, o que é muito normal, pois ele confessa que nunca compreendeu a si mesmo”. E conclui: “Mas o homem não é um animal estranho, incapaz de conhecer-se, de construir uma Cidade justa e estável, e no entanto capaz de produzir um modelo matemático coerente do universo? O mundo em sua totalidade é mais facilmente acessível do que o homem, que nunca é totalizável. Platão nos fascina” (JEANNIÈRE, 1995)
Referências
JEANNIÈRE, Abel. Platão.
Tradução: Lucy Magalhães; revisão técnica, Geraldo Frutuoso; consultor Fernando
Rodrigues. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
DIAS, Reinaldo. Ciência
Política. 2ª. edição. São Paulo: Atlas, 2013.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 2ª. edição. São Paulo: Atlas, 2012.
PLATÃO. A República
de Platão. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Editora Best Seller,
2002.
PLATÃO. Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1999.
RAMOS; MELO; e FRATESCHI. Manual de Filosofia Política. 3ª. edição. São Paulo: Saraiva, 2018.
ROCHA, José Manuel de Sacadura. Fundamentos de Filosofia do Direito. 5ª. edição. São Paulo: Atlas,
2014.